Nina Rizzi
Nina Rizzi
nina rizzi é escritora, tradutora, pesquisadora e professora. Formada em História pela UNESP e Mestra em Literatura Comparada pela UFC. Traduziu obras de Alejandra Pizarnik, Susana Thénon, bell hooks, Alice Walker, Ijeoma Oluo, Abi Daré, entre outres. É autora de tambores pra n’zinga, a duração do deserto, geografia dos ossos, quando vieres ver um banzo cor de fogo e sereia no copo d’água e do infantil A melhor mãe do mundo; nasceu em Campinas e vive em Fortaleza há 15 anos, onde faz laboratórios de escrita criativa com mulheres e integra as coletivas Pretarau - Sarau Das Pretas e Sarau da B1.
pastoral de yansã e a mulher que não se sabe
eu gostava de me perder e lambuzar
no acidente entre suas pernas, adorava
inspirava o ar que lhe saía das narinas
como o enfim deixar de respirar sofrido
depois, quando minha carne tremia, disse
- quando eu te amo, venta
e nunca mais parou a ventania.
una gorila
aquele tipo de mulher
que atravessa o delta
esgarça poemas meu bem
arregalase meu bem
goza junto meu bem
sangra junto meu bem
estou sangrando meu bem
e é água encarnada like dark
e é una montana
e é una playa
mango leaves meu bem
lambo meus lábios
atravesso o delta
sangro junto meu bem
nessa onda nessa onda
de calor meu bem
de va gar de va gar
soy una gorila meu bem
ninadí ricy
eu já fui uma índia
falava co fogo co’as águas plantas y ventanias
coisas da terra e da boca do céu
dançava me banhava nuinha co’a maloca toda
mais bão memo
era cumê homi branco
mergulho-risco quando pixo
é preciso cuidar bem do coração
te mando um salve enquanto
os manos incendeiam uma viatura aqui na rua
é preciso politizar a ferida
com a mão inteira acariñar a chispa
que arde fundo cá dentro. dá-me tua mão
é preciso cuidar bem do coração
POESIA na voz da poeta | in TIKTOK
SORTILÉGIOS PRA MATAR O MEU BENZINHO
tenho uma escova de cerdas macias, como nuvem, como pixaim. agradáveis ao toque como meu corpo quando dói e cai a água fria.
a escova guarda muito dos meus fios. toda sexta-feira junto-os todos, fazendo um grande cocoruto de pêlo algodoado.
sexta-feira é também o dia que o pai chega de viagem. é caminhoneiro e nunca escova os cabelos. gosta de se dizer o homem da família, ri bem alto demarcando sua existência na casa, em nossas vidas.
sento na beira da cama. o quarto não tem porta. da poltrona da sala me olha como me olham seus amigos quando aparecem para beber, como me olha o professor e o médico. o mecânico da bicicletaria e o padeiro.
aperto as pernas bem firmes e tento manter no rosto a suavidade de cada escovada. penteio até que o braço doa, até que o couro da cabeça doa.
uma escova cheia dos meus pêlos.
quando já é tarde da noite e a mãe deixou toda a louça limpa, chão limpo, carne curtindo nas bacias com banha, alho e sal, do jeito que o pai gosta, viro para dar boa noite, mãe.
o pai ronca alto e um cheiro acre de álcool envolve a casa pequena.
agora todos já dormem.
retiro um a um meus pêlos da escova, enrolo meu cocoruto. o maior que já fiz. o pai sempre diz que uma mulher com pêlos é uma mulher nojenta.
pego a lâmpada que escondi entre as calcinhas e a esmigalho firmemente, enquanto ouço na cabeça de choros abafados de mamãe, o som grave do punho do pai em suas costas e o engasgo profundo e seco.
esmigalho até que seja puro pó em minhas mãos que sangram, puríssimas.
arranco a carne da bacia e estraçalho um pedaço, recheando-a com meu cocoruto de pêlos e vidro moído.
recito baixinho as palavras mágicas de mamãe: só teremos paz quando ele morrer.
fecho a carne, como costurando a minha.
beijo o pedaço ensanguentado.
eu sou judas.
salomé.
me beija.
me come, papai.